sábado, 16 de setembro de 2017

Antes de medicar, conhecer o lugar

Amigo,

Você queria falar comigo sobre atenção primária. É que presenciou meu discurso de como me converti a esse mundo na faculdade, mas também testemunhou as reclamações contra o cotidiano que nos esmaga diuturnamente nos ambulatórios de lá. 

A conversa vai ser longa. Estarei lhe enviando cartas. Vou aproveitar este momento de reencontro com a medicina de família, agora que assumi papel de supervisor de médicos que estão no interior do Ceará. É um jeito diferente de olhar o que já fiz, vou olhar do alto.  

A primeira viagem que fiz, tinha que me encontrar com cada médico, mas queria conhecer o lugar. Se a família e o emprego principal me desobrigassem, passaria uma semana rondando, ouvindo as pessoas, fotografando as belezas, o normal e a feiúra dos cantos. Sentaria à pracinha no final da tarde para passear e aqui e ali escutar as conversas jogadas fora. Conheceria as iguarias da região, o pulso do comércio, o esforço da agricultura e da criação de gado, visitaria os cartões postais, embrenhar-me-ia na vegetação tentando sentir os espíritos elementais, subiria ao alto do serrote para ver o quanto tudo o que vi e ouvi era pequeno e parte de algo maior. Só então eu desceria para os doentes. 

Talvez daria para a equipe me reservar um canto no carro das visitas para os debilitados que não podem ir à unidade de saúde. Em cada casa, não sendo o médico, bisbilhotaria a arquitetura, a decoração, a simbologia da vida espiritual e as fotos das recordações. Nos tempos vagos da anamnese dos médicos, aproveitaria para perguntar algo da pessoa mesma, que não fosse dor, nem desespero. 

Sentir no corpo o que é estar dia e noite no lugar, a distância ao trabalho, o ritmo da vida, o silêncio da noite, como o vento se move quando todas as portas estão fechadas. 

Se a família e o emprego principal me desobrigassem por completo, tomaria um ano para entender como as festas modificam a cidade, como se prepara, como se despede delas. Como o ano nasce, como ele vem à pino em junho, como ele morre ao comemorar o nascimento de Cristo. Conhecer os sacerdotes do lugar, suas ladainhas, o movimento dos fiéis em busca de construir uma vida comunitária em aliança com alguma narrativa cósmica. O desafio diário de cuidar da transcendência tendo a imanência do ronco da barriga para acalmar.   

Só depois buscaria as estatísticas de doenças, os remédios e os instrumentos disponíveis para combatê-las, a evolução histórica desta luta nos último cinco anos, as condições de atendimento à população nas diversas unidades de saúde. Testemunhar algumas consultas para ver como as pessoas confessam suas dores.

Como essa liberdade não é possível, apenas um centésimo do terceiro parágrafo e um terço do penúltimo é que pude realizar. Tenho mais algum tempo por lá, quem sabe? 

sábado, 9 de setembro de 2017

Algumas pontuações pedagógicas em diálogo com a educação popular ou Educação para o Espírito

Aos alunos do segundo semestre da faculdade de medicina, estamos discutindo as melhores formas de abordar as pessoas para lhes ensinar algo que as engrandeça, fazendo somar os conhecimentos que trazemos das ciências da saúde. Se trata de ensinar formas de educação popular. 

A forma de educação mais conhecida é a tradicional ou professoral, em que o mestre se posta acima dos espectadores, transmitindo-lhes uma verdade doutoral. Geralmente é útil para platéias que já tem certa experiência ou identificação emocional com o conteúdo. Uma amiga relatou ter passado quatro horas escutando uma palestra sobre budismo que realmente a elevou. Os indivíduos propensos a esta imersão no mar de palavras do outro são aqueles que já vêm nadando por estas águas há um tempo, em busca aqui e ali de algum porto seguro que tenha um navegador experiente para lhes contar histórias de além-mar. 

A outra forma de educação que vem ganhando espaço nas últimas décadas, que predomina em quase toda nossa formação, é a do estímulo-recompensa, ou treinamento. É o que se faz quando se dá dez ou A+ para um aluno que cumpriu certa etapa a contento. É boa para formar hábitos e sedimentar patamares de conforto, mas raramente permite mergulhos mais profundos. 

Para mergulhar é preciso a virtude de arriscar-se, de enfrentar abismos. É preciso, ainda mais, estar preparado para as feridas do caminho. Só uma motivação para além das recompensas menores pode propiciar essa empreitada. Visa-se um horizonte esplêndido cujo percurso pode ser recheado de desafios terríveis, até mesmo de vários motivos de desistência. É (quase?) uma questão de fé persistir neste aprendizado. 

Por último, uma forma de educação muito querida dos movimentos populares e dos condutores de terapias de grupo é a de construção coletiva do saber ou dos círculos de cultura freireanos. O círculo é o modelo das relações sem arestas de poder, buscando-se ativamente despertar a força e a verdade de cada uma das vozes que compõem o grupo. O problema maior que se origina deste tipo de pedagogia, a que deram pra chamar de pedagogia do oprimido (das vozes tradicionalmente reprimidas), é como agregar conhecimentos que sejam exteriores ao círculo de cultura.

Quando nos deparamos com uma obra clássica que sobreviveu à corrosão do tempo, ela nos fala de verdades humanas que reverberam em nossa alma. Muitas vezes é preciso esforço para sair da sua própria ilha, percorrer as realidades inéditas que esta obra trás, para só então conseguir entendê-la. É preciso, muitas vezes, negar a si mesmo, para só depois se reencontrar em um lugar mais alto e mais profundo de si. 

Se ficamos girando em torno do respeito das verdades do círculo que se formou para "produzir conhecimento", muitas vezes estagnamos apenas no que este círculo é capaz. Cria-se um sentimento de tribo e um conjunto de defesas para proteger as relíquias culturais do povo. 

Há alguns conhecimentos, porém, que não são de povo algum, porque são de todos. Por vezes violentam nossa própria forma de enxergar a realidade, arrebatando-nos. Mesmo as comunidades tradicionais, tão protegidas pelos círculos de cultura, sabiam disso. Daí a figura dos xamãs, que davam norte aos espíritos do lugar. Seus êxtases traziam revelações de um mundo das ideias, quiçá de um mundo dos princípios, fazia sombra na comunidade, provocava genuflexões espontâneas.

A teoria da pedagogia do oprimido busca desconstruir qualquer tradição xamânica, qualquer conhecimento que seja passado por alguém que se intitule portador da verdade, representante da sabedoria que se ergue em um indivíduo singular sobre o coletivo. 

É verdade que o charlatanismo se vale dessas vestes para subjugar os ingênuos. Mas, nem tudo é charlatanismo. Junto com a briga contra estas classes nobre-sacerdotais, vai-se o assassinato de verdadeiros mestres espirituais, toda sorte de profetas e conselheiros que eram o pivô da harmonia da comunidade. Aquele que estava no meio-termo entre a alma humana e o divino, estes dois polos que a muito custo se equilibram, ao custo da vida, ao lucro da morte. 

Os círculos de cultura freireano costumam ser inimigos dos que sobem em palco e vomitam conhecimento, isto é, da pedagogia tradicional, a que chamam de transmissão bancária. São reticentes a respeito dos homens carismáticos, cuja liderança é capaz de arrastar multidões com um discurso de horas.

Assim como expus onde as outras pedagogias eram boas, faço o mesmo sobre a do oprimido. Proliferam onde há muitas vozes caladas por algum desmando crônico, alguma ditadura lacônica, que apenas edita ordens de uma cátedra. Feito o magma da Terra, as pessoas querem se expressar. Todavia, o que acho que a pedagogia do oprimido não deu conta de captar ainda é quando as vozes caladas são às do alto, que querem brotar na possessão dos corpos. O divino que se manifesta entre pescadores e carpinteiros é a próxima liberdade que devemos respeitar.