sexta-feira, 8 de julho de 2016

Humanidades médicas

Transmiti ontem um webinar para alunos de medicina membros da IFMSA Brasil (International Federation of Medical Students Assossiation, setor Brasil), do comitê SCORA (Standing Comittee on Reproductive Health including AIDS) e SCOPH (Standing Committee On Public Health). Eles me pediram para falar sobre Humanidades Médicas. 

Decidi falar sobre minhas aventuras em mergulhar nesse universo vasto que são as ciências humanas, e o porque é tão difícil a medicina se apropriar desse universo. 

Primeiro, expliquei que a forma que nós temos de aprender medicina é centrada na cabeça e nas mãos. Todo o resto do nosso corpo se mantém inerte no aprendizado. Bem diferente do pessoal do teatro e da dança, e cada vez mais da psicologia, cuja palavra de ordem é "experimente". E essa palavra de ordem leva o aprendiz a entender as possibilidades do próprio corpo inteiro. 

Veja que a primeira forma de aprender, que privilegia o cérebro, é filha de uma visão de mundo em que o espírito é superior ao corpo e o domina. É a mesma que dicotomiza radicalmente a vida. A segunda mostra-nos a vida como sendo única, sistêmica, e estas separações passam a não fazer sentido.

Se a coisa fosse diferente, encontraríamos mais aulas à céu aberto nas faculdades de medicina, com alunos andando, correndo, pulando, tudo isso em busca de sentir o coração batendo, e os ritmos que ele assume, a fim de aprender sobre eletrofisiologia. 

A segunda questão que nos afasta das humanas é a nossa vontade de verdade. O exercício da medicina se move sobre um substrato de pesquisas que buscam vorazmente a verdade sobre doenças. É claro que a verdade sobre doentes não é possível, pois doentes são pessoas singulares, cheios de acasos e idiossincrasias. Desde muito tempo, uma corrente platônica de pensamento privilegia o universal ao particular. Doenças são passíveis de se submeterem a universalizações. E, na nossa prática clínica, recebemos constantemente o feedback positivo de que é possível fazer isso, pois recebemos pacientes, os mais diversos, que conseguem ser enquadrados nos rótulos médicos de doença A ou B. 

Enquanto a medicina se mantém nessa prática universalizante, as ciências humanas, como a sociologia, a história e a filosofia, buscam cada vez mais o particular. Há uma crítica ácida sobre a razão totalizante. Um questionamento epistemológico desde o romantismo alemão se esta razão realmente é possível. Tudo isso se intensificou após a II Guerra Mundial, quando tentamos entender o que levou a um dos países mais cultos da Europa desenvolver crimes tão odiosos. Será que realmente nossa razão consegue abranger realidades totais, ou será que nós forçamos o que consideremos total na realidade arredia à homogeneização? Estaríamos torturando o real para ele nos dar o que queremos? Para isso, ver a mitologia do leito de Procusto

Então, comecei a falar sobre o aspecto do ethos médico, particularmente sobre a relação médico-paciente. Em recente pesquisa que fiz sobre a relação doutor-palhaço e o paciente criança, descobri que uma das dimensões mais importantes na relação de jogo dos dois é o conceito de duração

Duração é, segundo Henri Bergson, a verdade do tempo. O que nós vivemos no tempo é fluido, flexível, intuitivo. A consciência revela o que realmente é. O tempo não é esse carrasco do cotidiano, cujos ponteiros esmagam nossa experiência, mas é o tempo vivido, que pode ser diferente para cada situação. É o tempo que se distende quando, por exemplo, estamos com uma pessoa amada. Esse tempo deveria ser o tempo da consulta médica, mas constantemente impomos sobre a relação médico-paciente o tempo do relógio de ponteiros tiranos. A relação pautada no relógio talvez seja um dos principais motivos de burn-out, da fadiga da empatia, do desgaste da vontade de cuidar. 

Perceba que esse conceito que evoquei finca raízes na filosofia, flerta com as possibilidades da física, mexe com psicologia médica. São todas as áreas que passam ao largo da nossa consciência na faculdade. Porque o estudo da taxonomia das doenças não nos permite ter contato com conceitos como esse. 

Por fim, quis abordar um dos aspectos mais importantes da vida de um ser humano, que é a busca do sentida da vida, ou o sentido na vida. Se quisermos ser médicos de pessoas totais, e não de braços, pernas, fígados, deveríamos entender que nossa profissão acontece não só em uma pessoa singular, mas em uma pessoa singular que percorre uma história de vida, cheia de projeções, de metas, de buscas. A minha intervenção não pode ter um sentido meramente exorcizante, de extirpar um mal, mas, muitas vezes, deve ser uma negociação com o que cabe no projeto de vida da pessoa, com o que potencializa esse projeto. O lugar da medicina onde mais se enxerga isso é no final da vida, no paliativismo. A nossa gana por querer espantar a morte a qualquer custo nos impede de ver a vontade do outro sofredor, e de enxergar que a vida humana é de fato frágil, que nossa atividade de cura é finitia, e que, no cuidado com o outro, o diálogo de iguais deveria ser mais forte do que a nossa vontade de heroísmo. 

Referências de leitura:

1. SOBRE O CONCEITO DE DURAÇÃO em Bergson: Minha dissertação de mestrado, capítulo 7. https://issuu.com/allandenizard/docs/dissertacao_allan_marinho

2. SOBRE AMOR E A COMPLEXIDADE DAS NOSSAS RELAÇÕES, MAS SOBRE O QUANTO ELE É IMPORTANTE E TALVEZ O MAIS IMPORTANTE PARA NOSSA VIDA:
A revolução do amor, de Luc Ferry

3. SOBRE UMA ANÁLISEDE SOCIOLOGIA MÉDICA DO QUANTO A MEDICINA VEM PRECISANDO DE HUMANIZAÇÃO:
Contra a Desumanização da Medicina, de Paulo Henrique Martins
4. UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DA QUESTÃO:
Humanização dos Cuidados em Saúde: conceitos, dilemas e práticas, de Suely Ferreira Deslandes


Referências para assistir:

1. CONSTRUINDO UMA CULTURA DE HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE. 
EVENTO REALIZADO PELO SESC SÃO PAULO
DRA. ANA CLÁUDIA ARANTES


2. O QUE DE FATO IMPORTA AO FIM DA VIDA:




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