quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Medicina não é arte, mas ainda pode ser

Quando me disseram que medicina era ciência e arte, não fazia ideia o que era ciência nem muito menos arte para aquele que afirmou isso. Só tinha uma intuição que medicina era mais ciência do que arte, ou pior, que nada a tinha a ver com arte, e que a ciência era tudo. Agora eu sei algo mais e quero compartilhar isso com vocês. 

Já tinha visto isso em outras fontes, mas encontrei a fonte mais robusta destes meus últimos tempos que me fazem tecer estas considerações. Vou re-lendo com aqui o livro de Carole Talon-Hugon: Uma história pessoal e filosófica das artes, a antiguidade grega. 

Quando a ascendência grega hipocrática dizia ser a medicina ciência e arte, ou ainda, dizer ser [na medicina] a arte longa e a vida breve, esse arte aí não tem nada a ver com o que entendemos como arte atualmente. Para os gregos, arte era mais semelhante ao que entendemos por técnica. É o conhecimento do artesão, dos procedimentos para fazer o que se faz, para produzir o que se foi treinado para produzir. Não tem a ver com a genialidade, às vezes meio que miraculosa, encantadora, mágica, que associamos à arte do músico, do poeta, do pintor de nossos dias. É o que Carole Talon-Hugon, filósofa especialista em filosofia das artes, resgata:

"A technè [em grego, ars em latim] é, pois, uma atividade produtora: ela se dedica a fazer existir uma coisa cujo princípio está no artista-artesão e não na coisa produzida, à diferença das coisas naturais que produzem elas mesmas seus efeitos. É assim que uma planta cresce e que seu fruto provém desse crescimento, a technè, de outro modo, faz existir qualquer coisa que não estava na natureza."

Mas, quando via professores meus falando sobre a medicina ser uma arte, e quando vejo trabalhos por aí exaltando essa qualidade, me parece que esse predicado tece uma aura em torno desta profissão que a enalteceria acima das outras. Por isso não. 

Quando, se vê naquela outra citação - "a vida é breve, a arte é longa" - pelo que podemos apreender da mentalidade grega e da estrutura social daquela época, a arte que se fala aqui é a da tradição. Todo artesão que se preze, bem no estilo do chefe artesão pré-industrial, vem de uma linha de aprendizado milenar. Assim, a arte naquela frase refere-se à grande descendência sagrada dos homens imitadores da arte da Asclépio, este quase deus que mexeu com os mistérios da vida e da morte do homem. A vida de um homem é breve, pois é mortal. Todavia, arte, a tradição de mil homens, de toda uma escola de ensino, é quase eterna! 

Esse respeito pela tradição ainda se vê em algumas escolas médicas de renome internacional. Mesmo por aqui, temos, por exemplo, o orgulho das Escolas Paulistas de Medicina e das linhas de estudo-pesquisa que têm por ícone certo sexagenário que formou muitas gerações. 

Quando digo que medicina não é arte estou me referindo a não ser essa arte que entendemos ser a música de Chico Buarque ou a poesia de Drummond. Esta concepção de arte que vem à nossa mente quando pensamos nesses caras é a mesma que surgiu com a noção de gênios, criação da Idade Moderna. Ninguém imita um gênio. Ele é meio que inspirado de Deus. Sua obra é meio que um milagre. Por mais que pessoas se esforcem, não possuem o algo mais da genialidade que as faz chegar lá. 

Quando falo que a medicina ainda poder ser, pego a dica da mesma explicação de Carole Talon-Hugon: a arte do homem é diferente do fazer da planta porque o fruto da planta é feito da mesma matéria que ela, é produto natural da própria vida e de seu crescer. 

É isso que está em falta na nossa concepção de medicina. Precisamos pensar em uma medicina que seja um produto que sai de nós e que é feito de nossa mesma natureza. Pensava-se aos gregos antigos que a saúde devolvida para um doente era uma produção que não comungava da natureza do médico. Não é uma produção como um fruto que dele escapa. Essa distância radical entre o médico, o seu fazer e o produto final é o que tem tornado nossa profissão insípida. 

Como caminho possível de superação, sugiro lembrar-mos da cena do milagre vertido sobre uma mulher que há tempos sofria de hemorragia e que "tirou uma virtude" de Jesus. É a superação da arte médica grega pela arte de curar cristã. Buscar imitar essa cena seria assumir que todo esse fazer é um que "tira virtude" de nós, que nos modifica ao mesmo tempo que modifica o outro, que compartilha naturezas semelhantes, a da relação terapêutica, a da relação humana. Assumir nossa natureza de seres que só acontecem na relação. Por outro lado, como não somos um deus ou o Deus como acreditam os cristãos ser Jesus, não é em uma arte de curar que culminamos, mas em uma arte do cuidado do outro doente. 

Sair do curar para o cuidar parece diminuir toda a arte, tirá-la da zona do sagrado e da genialidade. Precisamos reconhecer que não. 

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